Com a pandemia, as empresas entraram nas casas de muitos profissionais de forma compulsória neste ano. Todos tiveram de se adaptar ao novo ambiente de trabalho.
Em alguns casos, não há previsão de volta para o escritório, mas, em outros, uma nova modalidade vem ganhando força: o modelo híbrido de trabalho, aquele em que o profissional trabalha de casa alguns dias, mas vai até o escritório da empresa em outros.
Uma pesquisa da consultoria de recrutamento Robert Half com 350 executivos mostra que 89% deles pretendem voltar ao escritório, mas vão permitir que suas equipes continuem trabalhando de casa ao menos parte da semana.
Os funcionários também demonstram interesse por esse modelo híbrido. Uma outra pesquisa da consultoria, desta vez com 800 profissionais, mostrou que 86% deles gostariam de trabalhar remotamente e com mais frequência do que antes da pandemia.
De acordo com um estudo da consultoria imobiliária Cushman&Wakefield, que presta serviços para empresas que alugam espaços em edifícios de alto padrão, 84% das empresas que ocupam escritórios de alto padrão já retornaram gradualmente ou pretendem retornar até o fim deste ano aos seus espaços físicos.
Mas a nova configuração de trabalho traz uma série de desafios: como está funcionando esse modelo híbrido na prática? Quais as recomendações para que as empresas e os funcionários se adequem ao novo sistema?
Em entrevista com o InfoMoney, advogados levantaram pontos relevantes e responderam as principais dúvidas. Confira:
O modelo híbrido hoje não é regulamentado por nenhuma legislação. Ou seja, não existe um conjunto de regras pronto que as empresas devem seguir. Mas como mistura o conceito do trabalho remoto com o presencial, dois formatos já existentes, há uma série de recomendações.
“As empresas que estão adotando o modelo híbrido estão criando políticas internas próprias, umas adotando regras mais similares ao teletrabalho, outras pensando em soluções mais parecidas com o presencial”, diz Dario Rabay, advogado trabalhista do escritório Cescon Barrieu.
Como não há uma definição legal do que é o modelo híbrido, há muitas incertezas. A orientação principal é que empresas e funcionários dialoguem e cheguem a acordos em comum para todas as dúvidas que surgirem.
Os advogados explicaram que os principais pontos a serem definidos são: o controle de jornada, a segurança e a divisão de custos.
Em primeiro lugar, é preciso conhecer os principais modelos nos quais as empresas podem se amparar legalmente para aplicar o modelo híbrido.
De acordo com André Ribeiro, advogado trabalhista e sócio-coordenador da área de Direito do Trabalho do escritório Dias Carneiro Advogados, o que vigora hoje é a Consolidações das Leis de Trabalho (CLT) , que conta com o regime ordinário de trabalho – aquele totalmente presencial, em que o profissional trabalha no escritório da empresa, oito horas por dia, 44 horas semanais, com direito a férias, horas-extras e 13° salário.
A Reforma Trabalhista de 2017 agregou à CLT a modalidade de teletrabalho, que formalizou o regime em que as pessoas trabalham para uma empresa, mas nas suas casas, em um coworking ou outro lugar que permita realizar suas atividades à distância – o chamado home office.
Nesse caso, não há controle de jornada, portanto não há o pagamento de horas-extras. Nesse caso, conforme a lei, a empresa deve fazer um contrato aditivo alterando o formato do presencial para o teletrabalho.
Vale lembrar que a Medida Provisória n° 927 (de 03/20), adotada por conta da pandemia, flexibilizou as regras e permitiu que as empresas adotassem o teletrabalho de forma unilateral e com 48 horas de antecedência, entre outras medidas como antecipação de férias individuais, em função dos efeitos econômicos causados pela pandemia.
Pela CLT, a mudança para o teletrabalho prevê um acordo com o empregado, que precisa ser avisado ao menos 15 dias antes de começar. Esse acordo deve ser formalizado no contrato.
A MP deixou de valer em 19 de julho, mas as empresas que adotaram as medidas podem mantê-las até 31 de dezembro deste ano, momento em que o período de calamidade pública se encerra, segundo Ribeiro. Por outro lado, quem não adotou as medidas durante o período de vigor da MP deve seguir as regras da CLT.
“Quando as MPs perdem a validade e não são convertidas em lei, o Congresso pode editar um decreto legislativo definindo como seriam tratados os efeitos futuros dos contratos realizados à luz da Medida Provisória, mas no caso dessa MP isso não aconteceu. Então, as empresas que adotaram as medidas da MP n° 927 enquanto a mesma estava em vigor seguem podendo aplicá-las – conforme o parágrafo 11 do artigo 62 da Constituição Federal – até o fim do período de calamidade, por uma determinação expressa que consta da própria medida”, complementa Ribeiro.
A partir do conhecimento dos regimes possíveis, os advogados explicam que as empresas que adotam o modelo híbrido vão aplicando suas próprias políticas, que podem se assemelhar mais às regras do modelo presencial ou às do teletrabalho.
Bruno Régis, advogado trabalhista do escritório Urbano Vitalino Advogados, diz que o modelo híbrido traz desafios porque ainda não existe uma jurisprudência sobre o tema. Ou seja, como tudo é muito novo, ainda não há um conjunto de decisões que pode ser usado como parâmetro para definir as regras – o que aumenta a incerteza sobre esse tipo de modelo de trabalho.
“As empresas precisarão encontrar maneiras de se resguardar. E o primeiro ponto nesse sentido é a anuência do trabalhador em relação ao regime a ser adotado, seja individual, direto com o funcionário, ou por meio de negociação coletiva, onde haverá uma maior segurança jurídica quanto à adoção desse modelo híbrido”, comenta o advogado.
a) Controle de horas
Cássia Pizzotti, advogada e sócia da área trabalhista do escritório Demarest, afirma que o controle de horas é um dos principais pontos de atenção do modelo híbrido.
“As empresas precisam tomar cuidado para não caracterizar o teletrabalho quando querem fazer o modelo híbrido. Por definição, não há uma quantidade de dias que define o que é teletrabalho e o que não é. Não tem uma definição legal: três dias por semana em casa é teletrabalho. Não é isso que vai definir, é um conceito de preponderância”, diz.
Então, segundo ela, a recomendação é que a empresa acerte com o funcionário ou faça um acordo coletivo com o sindicado sobre qual é o local de trabalho e qual é a exceção.
“O profissional está em home office, mas aparece uma vez por mês para uma reunião. Então, preponderantemente trabalha de casa, portanto, é teletrabalho e não há marcação de ponto. Agora, se ele tem vários compromissos presenciais e eventualmente consegue ficar de casa, o ideal é aplicar as regras do trabalho presencial”, explica Cássia.
Para ela, dessa forma há um funcionamento do modelo híbrido com ambas as partes sabendo sob quais regras o contrato está funcionando. “A empresa deve acertar uma prática para que não haja confusão de conceitos e para que o funcionário entenda seus direitos dentro do contrato no qual está trabalhando”, explica.
Um exemplo disso acontece com empresas que têm refeitórios em suas instalações, segundo ela.
“Como elas vão dimensionar se vão ou não fazer comida sem definir como vão aplicar o modelo híbrido? Precisam organizar o sistema de rodízio para saber quando e quanto fazer. Ou vão fechar seus refeitórios e começa a pagar o vale-alimentação? Como não existe uma regra para o modelo híbrido, a empresa que quiser retornar parcialmente vai precisar definir uma política de trabalho – pensando em infraestrutura, transporte, alimentação etc.”, explica.
b) Segurança
Sobre segurança, as recomendações giram em torno de alguns aspectos como a ergonomia, os acidentes laborais e os protocolos de segurança da pandemia, que são parte importante dessa volta aos escritórios.
Ribeiro diz que as empresas devem se preocupar com a ergonomia dos funcionários ao adotar o modelo híbrido. No modelo presencial, é obrigatório o fornecimento de cadeira ergonômica para o funcionário, além de o empregador precisar garantir que o funcionário se adapte, de modo a proporcionar conforto, segurança e desempenho.
No teletrabalho, por outro lado, embora a recomendação seja instruir os empregados de maneira expressa e ostensiva sobre como evitar doenças e acidentes de trabalho, não há obrigatoriedade de fornecimento de equipamentos como cadeiras ergonômicas. “Por isso, a recomendação é que as empresas adotem as regras de ergonomia no modelo híbrido, como fornecer a cadeira para o funcionário”, diz Ribeiro.
Régis acrescenta que todo o processo de promover um ambiente de trabalho remoto adequado é complexo. “Na empresa, é possível proporcionar um ambiente de trabalho adequado, o que naturalmente não se aplica no home office, ainda mais na velocidade com que ele foi adotado devido à pandemia. É evidente que o melhor cenário seria a empresa ir até a casa do trabalhador, disponibilizar mesa, cadeira, iluminação adequada. Na prática, é pouco factível e custoso”, comenta Bruno Régis.
Cássia diz que observa uma preocupação em relação à segurança do trabalho entre as empresas que estão voltando ao escritório. “Elas têm criado políticas de home office parcial nesse modelo híbrido, mas estão considerando as previsões legais existentes para a adoção de boas práticas, criando políticas, tentando acordar tudo com o empregado, criando ajuda de custo e dando recomendações sobre a cadeira ergonômica, por exemplo”, diz.
Régis também destaca a natureza dos acidentes de trabalho porque agora muitas pessoas podem sofrer acidentes tipicamente domésticos, como cair da escada ao trocar uma lâmpada, mas estando em horário de trabalho.
“Se a atividade for tipicamente doméstica, como esquentar água no fogão, o infortúnio não se caracterizaria como acidente de trabalho. Mas, por outro lado, se o trabalhador desenvolve, por exemplo, alguma doença osteomuscular, pode-se configurar nexo de causalidade entre a doença e a falta de um ambiente laboral ergonomicamente adequado”, pondera.
Por fim, Ribeiro explica que os protocolos de distanciamento que surgiram com a pandemia também devem estar na lista de prioridades das empresas justamente porque esse foi o motivo que levou os funcionários a trabalhar em casa e o modelo híbrido depende de um ambiente seguro nesse sentido.
“As empresas devem seguir todos os protocolos de segurança: federais, estaduais e municipais. E nossa recomendação é para que as empresas tenham uma área de saúde do trabalho que acompanhe de perto todas essas questões para que o ambiente esteja apto a receber os funcionários”, diz.
c) Ajuda nos custos
Outro tema sensível é o auxílio de custos para bancar equipamentos e outras despesas, já que, no modelo presencial, a empresa naturalmente forneceria os equipamentos e toda a infraestrutura, enquanto no teletrabalho o profissional consome a própria luz, internet etc.
“Nesse novo modelo híbrido a recomendação para a empresa é o acordo com o funcionário, após a definição de sua política interna. Pela CLT, no modelo presencial, a empresa provê os equipamentos ao funcionário, porém, no regime de teletrabalho, a empresa não é obrigada a fornecer nenhum tipo de suporte de equipamentos ou auxílio de custos. Mas no contexto atual, muitas empresas fornecem o equipamento básico no modelo de comodato gratuito, que é o empréstimo de notebook, por exemplo, ou mesmo o pagamento da conta de luz”, explica Ribeiro.
Ele ressalta que, no teletrabalho, a empresa é obrigada a fazer um contrato informando o tipo de auxílio que vai fornecer, se optar por isso. “Dar um suporte de custo não é obrigatório, mas informar no contrato se for fornecer algum auxílio, sim, detalhando que tipo de ajuda”, diz.
Cássia, do Demarest, reforça que essa recomendação é ostensiva em relação ao custeio de despesas. “Principalmente, no teletrabalho em que o custeio de despesas é opcional, a recomendação é que empresa se prepare para fornecer o básico, e acordar com o funcionário sobre o que será custeado. E isso pode se estender ao modelo híbrido”, diz.
Não há previsão de regulamentação. “As mudanças deste ano não eram previstas por ninguém e a legislação não vai acompanhar as transformações na mesma velocidade. Mas o modelo híbrido deve ser o futuro de muitas empresas”, diz Rabay, advogado do Cescon Barrieu.
Cássia, do Demarest, explica que o modelo híbrido não chega a ser inteiramente novo, mas no formato que a pandemia trouxe é preciso tempo para ver como a Justiça do Trabalho vai lidar com as diversas situações que podem surgir.
“Esse modelo misto já acontecia antes, embora em proporções menores, como uma empresa que permitia um dia de trabalho por semana em casa. Mas sempre sob algum modelo de legislação vigente, seja presencial, seja teletrabalho. A partir do momento em que isso cresce e se começa a buscar uma definição, a fim de entender o que caracteriza ou não o modelo híbrido, precisamos esperar a jurisprudência”, explica.
Para Régis, o trabalho em modalidade híbrida tende a ganhar maior adesão. “O regime híbrido, cedo ou tarde, terá de ser regulamentado. E, nele, a empresa não pode querer ter as vantagens do regime 100% remoto, já regulamentado pela CLT e que prevê, por exemplo, a não necessidade de submissão desses trabalhadores a um controle de suas jornadas de trabalho, portanto o não pagamento de horas-extras. Mas a discussão sobre uma regulamentação deve aumentar conforme casos forem levados à apreciação da Justiça”, diz.
Para ele, o regime híbrido tende a se espelhar nas regras do presencial. “No híbrido partimos do pressuposto de que o profissional terá o controle de horas enquanto estiver no escritório, então mesmo quando estiver em casa a empresa deve manter esse controle. A regulamentação é muito necessária para evitar a insegurança jurídica”.
Rabay, por outro lado, diz que, por enquanto, não é preciso uma regulamentação. “Acho desnecessário regulamentar porque com o leque que temos hoje as empresas podem se adaptar, definir suas próprias políticas e aplicá-las com a anuência dos funcionários. A pandemia obrigou as pessoas a irem para a casa e muitas empresas viram que era possível, que tinha espaço e oportunidades. Mas não sabemos quanto tempo esse modelo híbrido pode durar”, afirma.
Na prática, as dinâmicas acontecem de maneiras diferentes entre as empresas, já que cada uma está criando uma política própria.
Satoshi Yadoya, Gerente de Portfólio de Operação de Facillities Management da Cushman&Wakefield, compartilha que em áreas de alta criticidade, como datacenters, a empresa tem operado com rodízio de equipes, dias ou turnos alternados.
“E aplicamos nossa visão do ‘Six feet office’, que consiste em um ambiente de trabalho com mais espaço, com recomendações e sugestões de retomada segura aos escritórios, ainda que de forma parcial. Uma solução muito útil foi o sistema de reserva de mesas, que implantamos em alguns clientes, para preservar o distanciamento social e organizar a quantidade de pessoas na empresa”, diz. Cada funcionário tem seu local marcado e há o revezamento de dias da semana.
Segundo ele, os clientes da consultoria estão reavaliando os cenários, modelos e projetando opções para o futuro. “Mas muitos apontam que home office 100% não é viável, aí o equilíbrio entre um modelo híbrido, com adoção do home office de uma a três vezes por semana, variando conforme a necessidade de cada empresa, negócio, cultura e questões específicas”, diz.
Em linha, Ribeiro afirma que vê seus clientes com projetos pilotos de modelo híbrido focados principalmente na liderança. “Sem ajuda de custo em dinheiro, mas fornecendo notebooks e celulares, por exemplo. As políticas de segurança de informação se mantiveram iguais, e há uma tendência de ter um dia fixo por semana para comparecer à empresa para reuniões específicas”, conta.
Segundo ele, com a retomada do trabalho presencial, coordenadores, gerentes, e diretores perceberam o ganho de tempo ao estar em casa. “Vemos uma movimentação clara da permanência do modelo híbrido pós-pandemia para a liderança. Para posições mais baixas, vemos um pouco mais de resistência sobre o modelo, e muitas dúvidas sobre como vai funcionar”, diz.
O InfoMoney fez uma reportagem contando como as empresas estão se preparando para voltar aos escritórios. A Nestlé Brasil, por exemplo, adota o modelo híbrido. Os funcionários voltaram ao trabalho presencial no dia 27 de agosto em um sistema de revezamento de equipes, no qual cada empregado deve comparecer duas vezes por semana ao local de trabalho.
Em meio a tantas novidades, uma conclusão é certa: enquanto o mercado de trabalho continuar sujeito às regras ditadas pela pandemia, os profissionais devem estar preparados para mais mudanças.